
O aumento da popularidade dos jogos eletrônicos como forma de entretenimento tem dado origem a uma nova forma de profissionalismo: o esporte eletrônico. Com isso, surge também a figura dos cyber-atletas, jogadores profissionais que participam de competições e
campeonatos em equipes especializadas. Entretanto, a falta de regulamentação específica para essa modalidade de esporte e suas formas de contratação têm gerado preocupações quanto aos impactos na vida desses profissionais. Ainda que haja contratos formalizados, muitos deles não possuem a segurança e a proteção garantidas pela legislação trabalhista. É comum, por exemplo, encontrar contratações por meio de prestação de serviços ou contratos de adesão, que não configuram vínculo empregatício e não garantem direitos fundamentais como férias remuneradas, 13º salário e benefícios previdenciários. Nesse sentido, é importante discutir os impactos da falta de regulamentação e os tipos de contratação que envolvem os cyber-atletas, a fim de garantir a proteção desses profissionais e o desenvolvimento sustentável da modalidade.
Os tipos de contratação
De acordo com uma pesquisa realizada pelo Grupo de Pesquisa em Direito e Jogos Eletrônicos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), os contratos brasileiros feitos entre times e cyber atletas em sua maioria são de prestação de serviços ou adesão, e não de emprego. Essa falta de regulamentação acaba por gerar uma série de impactos negativos na vida desses profissionais, como a falta de garantia de direitos trabalhistas e a ausência de segurança na relação contratual.
Na modalidade de prestação de serviços, o jogador é contratado como pessoa jurídica, sendo responsável por emitir notas fiscais e recolher seus próprios encargos trabalhistas, o que muitas vezes acaba sendo prejudicial financeiramente para o atleta. Já na modalidade de adesão, a contratação é feita como se fosse um patrocínio, sem estabelecer claramente as obrigações e direitos do jogador.
Outra forma de contratação dos cyberatletas é através da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em que os jogadores são registrados como funcionários da equipe e recebem salários, férias, 13º salário, entre outros direitos trabalhistas. Neste modelo, é necessário que a equipe assine um contrato de trabalho com o atleta e cumpra as normas estabelecidas pela CLT, incluindo o recolhimento dos encargos
trabalhistas e previdenciários.
Além disso, a Lei Pelé também pode ser utilizada como base para a contratação dos cybers atletas. A lei estabelece que a relação entre os clubes e os atletas profissionais deve ser regulada por contratos específicos, que preveem as obrigações e direitos de cada parte. Dessa forma, os times de eSports podem se basear na Lei Pelé para elaborar contratos de trabalho ou prestação de serviços com os cyber-atletas. É importante destacar que, independentemente do tipo de contrato estabelecido, é fundamental que os direitos dos jogadores sejam respeitados. A falta de regulamentação específica para os cyberatletas deixa tal categoria profissional vulnerável a abusos por parte das equipes, que podem não oferecer condições adequadas de trabalho ou não cumprir com os direitos trabalhistas. Portanto, é necessário que sejam estabelecidas normas e regulamentações específicas para o setor de eSports, garantindo a proteção dos direitos dos jogadores e o desenvolvimento sustentável do mercado.
Consequências da utilização de formas inadequadas de contratação dos cyber atletas
A utilização de formas inadequadas de contratação desses atletas pode trazer diversos danos tanto para os jogadores quanto para as equipes que os contratam. Primeiramente, quando contratados como prestadores de serviços ou através de contratos de adesão, há um risco maior de que não sejam reconhecidos como “funcionários”, e, portanto, não tenham direitos trabalhistas garantidos. Isso pode resultar em ações judiciais que busquem o reconhecimento do vínculo empregatício e o pagamento de verbas trabalhistas, como férias, 13º salário e FGTS.
Além disso, a falta de regulamentação específica para os profissionais pode gerar incertezas quanto à aplicação de leis trabalhistas e previdenciárias. Isso pode levar a situações em que os jogadores ficam prejudicados em relação a seus direitos sociais, como aposentadoria e seguro desemprego. Outro problema decorrente da utilização de formas inadequadas de contratação é a falta de segurança jurídica para as equipes. A contratação de jogadores como prestadores de serviços ou através de contratos de adesão pode ser questionada a qualquer momento, o que potencialmente origina uma grande instabilidade nos times. Ademais, a falta de formalidade dos contratos pode gerar dúvidas quanto à validade das cláusulas neles contidas. Além dos danos e consequências para os próprios atletas, é importante destacar a questão da proteção de crianças que atuam nesse cenário. Isto porque a falta de regulamentação pode permitir que estas sejam contratadas para atuar como cyberatletas sem a devida proteção e garantias legais.
Isso é especialmente preocupante, pois o mundo dos jogos eletrônicos pode ser extremamente competitivo e estressante, com longas horas de treinamento e competições online. Crianças podem ser mais vulneráveis a problemas de saúde mental, assédio e exploração, especialmente se não houver supervisão adequada por parte dos pais ou responsáveis. A Lei Pelé, por exemplo, prevê que atletas menores de 18 anos só podem ser contratados em condições especiais e com a autorização dos pais ou responsáveis legais. A regulamentação para a contratação de cyber-atletas pode estabelecer diretrizes semelhantes para garantir a proteção e bem-estar de crianças que atuam nessa
área.
Portanto, a falta de regulamentação adequada pode permitir a exploração de crianças como cyber- atletas, colocando sua saúde e bem-estar em risco. Dessa forma, é essencial que sejam estabelecidas leis e diretrizes claras para proteger esses atletas em desenvolvimento.
Análise de um “case”
O caso NappOn X PaiN representa uma importante mudança na relação entre os cyber-atletas e as organizações. Durante onze meses, o pro-player esteve vinculado à organização PaiN, mas devido à inadimplência da empresa, rescindiu o contrato unilateralmente e buscou suas verbas trabalhistas perante a justiça do trabalho.
Esse caso exemplifica a importância de uma regulamentação adequada na relação entre os atletas e as organizações, bem como a necessidade de se buscar soluções justas para conflitos trabalhistas no âmbito dos esportes eletrônicos. As partes firmaram um acordo e a PaiN teve de pagar R$ 60 mil reais, referente às verbas trabalhistas.
Sucita-se que os jogadores têm de cumprir tarefas com subordinação, em horários determinados e recebem remuneração para tanto, portanto, restam caracterizados todos os requisitos para que seja reconhecido o vínculo empregatício.
Como contratar de forma correta com base no cenário atual
A contratação através da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) parece ser a mais adequada para atender às necessidades de cyber-atletas, enquanto não há uma regulamentação específica para esta modalidade. Isso devido ao fato de a CLT garantir os direitos trabalhistas e previdenciários previstos na legislação, protegendo assim tanto o trabalhador quanto o empregador. Além disso, essa modalidade de contratação permite a fiscalização por parte do Ministério do Trabalho e Emprego, que garante o cumprimento das normas e evita possíveis abusos ou ilegalidades.
Por outro lado, a contratação através de outras formas, como prestação de serviços ou contrato de adesão, pode gerar problemas trabalhistas no futuro, pois essas modalidades não preveem todos os direitos trabalhistas e previdenciários assegurados pela CLT. Ademais, a falta de regulamentação específica para os cyberatletas pode levar a interpretações divergentes entre as partes, o que pode gerar litígios judiciais e prejuízos financeiros para ambos os lados.
As atividades desenvolvidas pelos jogadores possuem características que se assemelham a um vínculo empregatício. Eles são contratados para participar de equipes ou times, devem seguir uma rotina de treinamentos e competições, são subordinados aos treinadores e dirigentes, e recebem remuneração pelo trabalho realizado. Essas características são semelhantes às de um emprego formal, previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que determina os direitos e deveres tanto do empregador quanto do empregado, sendo a forma mais segura e adequada de proteger os direitos trabalhistas e previdenciários dos profissionais envolvidos.
Cenário atual
O Projeto de Lei 205/23, que está atualmente em análise pela Câmara dos Deputados, é um
dos projetos que busca regulamentar a atividade dos cyber-atletas no Brasil. Esse projeto
define os “esports” ou “eSports” como modalidade esportiva para todos os efeitos legais e
considera as competições realizadas por meio de jogos eletrônicos entre atletas profissionais
ou amadores, reunidos de maneira presencial ou online. Se aprovado, esse projeto poderá
trazer maior segurança jurídica para a atividade dos cyber-atletas, além de trazer clareza para as relações trabalhistas entre os atletas e as organizações que os contratam.
É importante ressaltar que, além do Projeto de Lei 205/23, outras iniciativas legislativas
buscaram regulamentar a atividade dos cyber-atletas. Entre elas, destacam- se o Projeto de
Lei 3450/2015 e o Projeto de Lei 7747/2017. O primeiro buscava adicionar um inciso ao
artigo 3º da Lei Pelé para reconhecer expressamente o desporto virtual, facilitando a busca
dos direitos trabalhistas pela via judicial. Já o segundo também buscava adicionar um
dispositivo ao mesmo artigo da Lei Pelé, mas ambos foram rejeitados. Essa rejeição dificulta
o reconhecimento da profissão dos cyber-atletas e ressalta a importância da discussão sobre a regulamentação desse setor em âmbito legislativo.
Além disso, é elementar mencionar o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 383/2017, que trata
da regulamentação dos esportes eletrônicos no Brasil. O objetivo principal do projeto é
reconhecer os esportes eletrônicos como uma modalidade esportiva e, consequentemente,
incluir os jogadores no artigo 3º da Lei Pelé.
A ementa do PLS nº 383/2017 define os esportes eletrônicos como atividades que, por meio
do uso de artefatos virtuais, caracterizam a competição de dois ou mais participantes, no
sistema de ascenso e descenso misto de competição, com utilização do round-robin
tournament systems, o knockout systems ou outra tecnologia similar com a mesma
finalidade.
O PLS nº 383/2017 foi arquivado no final de 2022. A aprovação do projeto seria um passo
importante para o reconhecimento do vínculo empregatício dos cyber-atletas e para a
regulamentação da atividade no país. A dificuldade enfrentada para o reconhecimento e legislação dos eSports no Brasil é reflexo da falta de compreensão sobre o tema por parte de muitos legisladores e autoridades do esporte. Neste sentido, a Ministra do Esporte se posicionou sustentando que:
“A meu ver, o esporte eletrônico é uma indústria de entretenimento, não é esporte. Você se
diverte jogando videogame, você se divertiu. ‘Mas o pessoal treina para fazer’. Treina, assim
como o artista. Eu falei esses dias, assim como a Ivete Sangalo também treina para dar show e ela não é atleta da música. Ela é simplesmente uma artista que trabalha com entretenimento. O jogo eletrônico não é imprevisível, ele é desenhado por uma programação digital, cibernética. É uma programação, ela é fechada, ela não é aberta, como o esporte.”
No entanto, tal alegação demonstra um desconhecimento sobre as características dos
eSports como uma modalidade esportiva. Ao comparar o treinamento de um atleta para uma competição com a preparação de um artista para um show, a ministra ignora a complexidade e a exigência física e mental das competições de eSports. É importante que as autoridades do esporte e os legisladores entendam que os eSports não são apenas uma forma de entretenimento, mas sim uma modalidade esportiva legítima. Assim como em outras modalidades, os cyber atletas têm rotinas de treinamentos rigorosas, participam de competições profissionais com premiações em dinheiro e representam suas equipes em eventos nacionais e internacionais. É preciso superar essas barreiras para que tal modalidade de atleta possa ter seus direitos trabalhistas e previdenciários reconhecidos, além de fomentar o desenvolvimento da indústria de eSports no Brasil.
Além disso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se posicionou afirmando a influência violenta dos jogos eletrônicos em crianças e jovens, sob o fundamento de que “não tem jogo, não tem game falando de amor, é game ensinando a molecada a matar”. No entanto, tal afirmação é equivocada e não tem base científica comprovada. Estudos têm mostrado que não há uma relação direta entre a violência em jogos e a violência na vida real. Além disso, essa postura de “demonização” dos jogos eletrônicos é comum em uma sociedade que muitas vezes não entende as novas formas de entretenimento e cultura que surgem com a evolução tecnológica.
Conclusão
Os cyber-atletas têm conquistado cada vez mais destaque na indústria de esportes eletrônicos. No entanto, a falta de regulamentação específica para esta modalidade de trabalho gera discussões sobre os tipos de contratação e seus impactos. Atualmente, a contratação dos cyberatletas pode ocorrer de forma autônoma, como pessoa jurídica, através da Lei Pelé ou pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Porém, devido à falta de regulamentação específica, ainda existem dificuldades em buscar reconhecimento de seus direitos trabalhistas.
Além disso, projetos de lei que buscam regulamentar a atividade dos cyber- atletas, como reconhecê-los como profissionais de esportes eletrônicos e incluí-los na Lei Pelé, têm enfrentado dificuldades em serem aprovados pelo Congresso Nacional. A falta de regulamentação própria também gera discussões sobre a natureza dos esportes eletrônicos. Enquanto alguns defendem que se trata de uma modalidade esportiva, outros argumentam que é uma indústria de entretenimento. Em suma, a falta de regulamentação específica dos esportes eletrônicos e dos cyber-atletas gera incertezas e dificuldades tanto para os jogadores quanto para as empresas que os contratam, e torna difícil a definição de seus direitos e obrigações trabalhistas.
Referências Bibliográficas
ASSIS E MENDES. E-SPORTS: CYBER ATLETAS E OS RISCOS TRABALHISTAS. 2021. Disponível em: https://assisemendes.com.br/e-sports-cyber-. Acesso em: 05 abr. 2023.
CAMARA DOS DEPUTADOS. PROJETO DEFINE ESPORTS COMO MODALIDADE ESPORTIVA. 2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/938596-PROJETO. Acesso em: 05 abr. 2023.
JORGE, Rafael de Mello. OS DIREITOS TRABALHISTAS DO CYBER ATLETA. Jusbrasil, 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81660/os-direitos-trabalhistas-do-cyber-atleta. Acesso em: 12 abr. 2023.
NDM ADVOGADOS. E-SPORTS: FORMAS DE CONTRATAÇÃO DOS ATLETAS E OS RISCOS TRABALHISTAS. 2021. Disponível em: https://ndmadvogados.com.br/artigos/e-sports-formas-de-contratacao-dos-atletas-e-os-riscos-trabalhistas. Acesso em: 13 abr. 2023.
SENADO FEDERAL. Atividade legislativa – PL 548/2022. 2022. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/131177. Acesso em: 22 abr. 2023.