INTRODUÇÃO

É fato que na atualidade as mídias sociais têm tido um papel muito importante para a população, seja como forma de entretenimento ou até mesmo como forma de trabalho. Esse advento de redes sociais e a hiper conectividade revolucionaram a forma como nos comunicamos, transformando profundamente o mundo em pouquíssimo tempo. A questão que este artigo visa tratar são justamente as consequências que tal evolução trouxe, com recorte específico para a exploração da imagem de menores nas mídias digitais.

A circunstância motivadora para fazer a análise deste tema foi a pandemia de Covid-19 que se iniciou em 2020. Com a imposição do isolamento social por causa de tal doença, as pessoas tiveram que migrar do mundo físico para o digital em quase todos os sentidos. A problemática que está atrelada a isso, é que nós não estávamos habituados a fazer tudo de forma online, então tivemos que aprender a nos comportar em tal ambiente de maneira quase que instantânea, além de não existir mais uma separação entre o que é trabalho e descanso. Por outro lado, as crianças que já cresceram conectadas neste universo tiveram mais facilidade, mas ficaram ainda mais dependentes de tal meio e mais suscetíveis a perigos com a superexposição de sua imagem nas redes.

Na atualidade não podemos mais falar em privacidade plena, o que se pode ter é o poder sobre ela, ou seja, escolher quem vai ter acesso às suas informações. Tamanho tem sido o problema da superexposição que até se cunhou um novo termo: sharenting, a soma de share (compartilhar) e parenting (criação). É graças a essa alta visibilidade que, diversas crianças hoje em dia produzem conteúdo para as mídias digitais, porém muitas delas nem definem o que fazem como “trabalho”, pois normalmente entram “nesse mundo” como forma de brincadeira. Entretanto, a realidade tem se mostrado cada vez mais dura com essas figuras públicas, principalmente com os digitais influencers[1] ou blogueiros, que usam as redes sociais para mostrar seu dia a dia e as coisas que fazem.

CONCEITUAÇÕES

O uso da internet por crianças e adolescentes é crescente no Brasil e, com a pandemia da Covid-19, esse cenário só se intensificou. Segundo Pesquisas[2], 89% da população de 9 a 17 anos é usuária de Internet no Brasil, o que equivale a 24,3 milhões de crianças e adolescentes conectados. Ressaltando que tais dados foram coletados antes da pandemia. Portanto, através destes números, fica claro que grande parte dos usuários das mídias digitais são os jovens, e com isso surgem diversas complicações.

A primeira problemática se dá por tais indivíduos não enxergarem o que fazem como trabalho. Isso porque, eles acabam se dedicando massivamente à produção de conteúdo para seus seguidores, uma vez que, como autônomos, são eles que definem  seus horários, além de produzirem material para a rede social, o que normalmente é visualizado como uma atividade de lazer por muitos, por isso não percebem quanto tempo gastam neste meio. Aqui, a palavra “massiva” não foi usada à toa, vivemos na era do imediatismo num mundo capitalista, ou seja, as coisas têm um “prazo de validade” muito curto. Para continuar lucrando com as redes sociais, uma pausa ou um tempo para descanso não é possível, pois nesse intervalo de tempo outras pessoas viralizam no meio digital, e você acaba sendo esquecido. Não obstante, o próprio algoritmo da rede contribui para essa queda, isso porque quando o usuário perde a consistência ou diminui drasticamente a quantidade de postagens, essa ferramenta entende que o sujeito está menos ativo na rede, gastando menos tempo ali e por isso deixa de notificar os seguidores daquele indivíduo sobre as novas postagens que ele cria, e por consequência prejudica o engajamento daquela pessoa. Consequentemente, o cidadão só monetiza enquanto produz, e isso por si só já é um grande problema, então fica o questionamento: os influencers estão o tempo todo trabalhando?

Mediante a isso, outro impasse que surge é o do trabalho infantil. Como mencionado acima, ser um digital influencer, blogueiro ou youtuber é um trabalho, pois gera lucro e demanda tempo e esforço, independentemente de ser algo criado para um meio diferente do convencional. É válido lembrar que a previsão da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e da Constituição Federal afirma que apenas crianças maiores de 14 anos podem trabalhar, em condições especiais (de aprendiz), passando por análise individual do caso concreto, para permissão ou não; a única exceção prevista em lei é para os atores e atrizes mirins, cuja tutela legal já existe. Além disso, é interessante notar que o Instagram só permite contas para usuários que tenham mais de 13 anos, e assim ocorre com diversas outras mídias, como Facebook e Youtube. Mas mesmo com esse impedimento da rede social, inúmeros são os perfis puramente infantis. Portanto, seria ilegítima a forma como essas crianças monetizam, já que, a princípio, estão violando as diretrizes dos sites? É importante dizer que os menores de 13 anos podem ter contas em redes sociais, desde que sejam controladas por seus responsáveis. Mas como garantir que de fato é um adulto quem cuida dessas contas? Como o direito tem encarado estes entraves?

Ademais, soma-se outra complicação a toda essa história, que é a exploração da imagem de menores nas mídias. Por mais que esse fato pareça distante de nós, devemos pensar em como são os bastidores da vida das pessoas que trabalham neste meio. É intrigante pensar nisso, pois tais indivíduos compartilham quase todo o seu dia e itinerário na internet. Como muitos não enxergam o que estes sujeitos fazem como trabalho, eles também não percebem que crianças são usadas pelos pais para ganharem lucro sobre suas imagens. Essa atividade é mais comum do que imaginamos, haja vista, o número de fotos de recém-nascidos que existe nas redes, isso quando eles próprios já não têm um perfil pessoal enquanto ainda estão no ventre materno. Estas postagens “inocentes” de fotos de bebês podem parecer banais, mas é fato que diversas marcas infantis buscam exatamente estes perfis para parcerias de trabalhos, com a divulgação de determinado produto, por exemplo. Assim, tais contas não foram criadas à toa na rede, ou apenas como forma de lazer. Ainda que velado, existe sim um fator mercantil nesse meio; logicamente não são todos os indivíduos que têm essa mentalidade, mas devemos nos atentar para tal realidade.

Antes de adentrarmos no aspecto legal em si, é bom destacar o que profissionais da saúde falam sobre os impactos dessa superexposição. A psicóloga clínica Talyta Borges Cardoso chama a atenção para os riscos do sharenting (compartilhamento) de crianças nas redes e alerta para a possibilidade de precedentes perigosos advindos dessa exposição. “Esse comportamento interfere diretamente no emocional da criança e em sua visão de si mesma, uma vez que não tem discernimento para opinar ou decidir sobre o que é publicado sobre ela”, alerta. Não existe uma ética sobre como se comportar na internet, e as pessoas utilizam justamente este meio para se esconder e proferir opiniões que normalmente guardariam para si, esse desrespeito não se limita a uma idade ou a um grupo, todos são alvos, inclusive crianças.

ASPECTO JURÍDICO

É justamente na relação da exploração da imagem de menores nas mídias que encontramos o maior dos problemas. Primeiro, porque a disposição constitucional resguarda o direito à imagem – Vide artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, nos incisos V, X e XXVIII (além das previsões específicas do ECA). Em segunda análise, porque neste recorte ocorre a exploração da imagem de um terceiro sujeito, o que, em determinadas situações, pode se enquadrar como crime (em casos de difamação[3], por exemplo).

  • Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
  • V – É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
  • X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
  • XXVIII – são assegurados, nos termos da lei:

a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;

b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;

Relembrando que os direitos da personalidade são inerentes a todo o ser humano, inclusive aos recém-nascidos, portanto, não cabe a ninguém os violar. Reflitamos, não se consegue simplesmente excluir do imaginário das pessoas o que foi visto nas redes, nem as concepções que criaram a partir do que foi exposto. Depois de publicada, a imagem está em “espaço público” e poderá ser acessada por qualquer pessoa e a qualquer momento. Em vista disso, são diversos os questionamentos que surgem a partir dessa problemática, e, pior, estamos sob um vácuo jurídico acerca das perguntas levantadas até aqui.

Neste sentido, é intrigante pensar que não há previsão penal para o caso do abuso sobre o trabalho infantil. A Constituição proibiu que fosse exercido, mas as pessoas que se beneficiam desta prática não são punidas justamente por falta de legislação vigente aos casos. Essa é uma temática polêmica, mas que pouco tem sido discutida atualmente, o que é em certa medida uma loucura, haja vista, os dados que foram apresentados anteriormente.

Agora, analisando tudo isso sobre a perspectiva do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), podemos observar a mesma lacuna jurídica sobre o impasse do direito à imagem e privacidade no meio digital. Porém, nesse caso a situação é ainda pior, já que, o ECA dedica-se especial e inteiramente à tutela dos direitos das as crianças e adolescentes, indivíduos incapazes frente ao ordenamento jurídico, ou seja, sem capacidade de praticar por si mesmos os atos da vida civil (o poder de decisão fica sob o comando do responsável ou guardião). Para o recorte jurídico, devemos entender, então, que o mais importante não é atender a vontade destes jovens, mas sim analisar quais consequências as decisões vão trazer para no âmbito dos direitos e do futuro deles.  Sendo assim, encontramos a maior incompatibilidade entre a realidade e a esfera constitucional no artigo 17 do ECA.

  • Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

Stacey Steinberg, professora de Direito da Universidade da Flórida, e mãe que estuda profundamente o sharenting, afirma queos pais são, por um lado, “os guardiões da informação pessoal de seus filhos e, por outro, os narradores da sua vida” e ao narrarem, compartilham informações sobre os filhos ao mesmo tempo em que os privam do direito a fazê-lo em seus próprios termos. E isso é uma fonte potencial de dano à qual prestamos pouca atenção[4].

Na opinião de 58% dos pais norte-americanos que compartilham fotos, eles acreditam que não há nada de errado em postar sem o consentimento dos filhos, segundo a empresa de segurança McAfee. E 40% acreditam que a foto poderia acabar envergonhando a criança, mas que esta não se importará, ou acabará superando. Contudo, pouco a pouco vão surgindo casos pontuais de menores que denunciam judicialmente seus pais. Na França, as autoridades podem impor multas de até 45.000 euros (191.700 reais) mais um ano de prisão para quem publicar fotos íntimas dos filhos sem sua permissão [4].  Mediante a tudo isso, podemos nos questionar, “mas e o Brasil?”

Com relação ao nosso país, podemos dizer que o assunto ainda tem sido pouco debatido em grandes tribunais ou com a população em geral. Mas a lei é clara ao afirmar que:

  • Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. – ECA

Portanto, seria viável o ingresso no Judiciário em virtude de violação aos direitos à imagem e privacidade durante a infância e adolescência, ainda que cometida pelos próprios pais.

Em última análise, é interessante mencionarmos o princípio da felicidade, este é considerado um direito fundamental materialmente constitucional, para o qual existe o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) nº 19/2010, que visa à sua inclusão no rol de direitos sociais da Constituição. Ainda que ausente e carente de previsão expressa na legislação, sua aplicação não está impedida. O STF (Supremo Tribunal Federal) aceitou o uso do princípio e passou a reconhecê-lo através da ADI 3300/DF[5].

Tal princípio deve ser visto nas relações familiares, em que a felicidade da criança está diretamente ligada à proteção e garantia dos direitos dessa, fornecidos por seu responsável ou pelo Estado.

CONCLUSÃO

Através de tudo o que foi exposto neste artigo, fica claro que a superexposição, principalmente por jovens nas mídias digitais, é uma problemática complexa no Brasil, especialmente considerando o vácuo jurídico acerca deste tema específico. Além disso, deve-se ressaltar que pouco tem sido discutido sobre este impasse tanto pela população quanto pelos agentes de direito.

Sendo assim, podemos chegar à conclusão de que um primeiro passo para resolvermos tal impasse é o de estudarmos e promovermos debates profundos sobre a exploração da imagem de menores nas mídias digitais. Pois fica nítido, através dos dados e do que foi apresentado neste artigo, que a população ainda age de maneira inocente quando se trata de assuntos relacionados a redes sociais. Devemos nos atentar para o fato de que a internet é, sim, uma grande ferramenta, mas que pode ser usada com más intenções. É justamente por ser um ambiente relativamente “novo”, que ainda não tem regras muito definidas e claras sobre este meio, o que facilita certos tipos de violação jurídica. Aqui, cabe também uma última ressalva: o fato de alguém ser responsável por uma criança não lhe dá poder para violar os direitos dela – a legislação serve justamente para garantir uma isonomia entre todos, e não cabe a ninguém usurpá-la.

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

[1] Digital Influencer = Pessoascom muitos seguidores em alguma rede social que criam conteúdo para estes.
[2] Dados retidos da TIC Kids Online Brasil (TIC é a pesquisarealizada pela CETIC) = O Cetic.br é um Centro Regional de Estudos, sob os auspícios da UNESCO

[3] A difamação implica, segundoo Código Penalemseuart. 139, naimputação daprática deum fato a terceiro que traz prejuízos e ofende sua reputação.
[4] Como relatado pela matéria intitulada de “Não publique aquela foto do seu filho nas redes sociais”,publicada pela revista El País.

[5] Trecho retirado/inspirado pelo artigo “Uso da imagem infantil nas redes sociais: uma análise da exposição da imagem infantil como fonte de renda familiar e possíveis abusos” de Júlia Martins – IBDFAM CAMPOS, Monica. Direito à privacidade no uso das redes sociais: Riscos decorrentes do excesso de exposição. Jus.com.br, Jus.com.br, p. 1 – 3, 1 maio 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58045/direito-a-privacidade-no-uso-das-redes-sociais. Acesso em: 23 jun. 2021.

CRIANÇAS e adolescentes conectados ajudam os pais a usar a Internet, revela TIC Kids Online Brasil. Cetic.br, [S. l.], p. 1 – 1, 23 jun. 2020. Disponível em: https://cetic.br/pt/noticia/criancas-e- adolescentes-conectados-ajudam-os-pais-a-usar-a-internet-revela-tic-kids-online-brasil/. Acesso em: 23 jun. 2021.

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MACHADO, Júlia Martins. Uso da imagem infantil nas redes sociais: uma análise da exposição da imagem infantil como fonte de renda familiar e possíveis abusos.Instituto Brasileiro de Direito da Família, [s. l.], 3 maio 2021. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1691/Uso+da+imagem+infantil+nas+redes+sociais%3A+uma+an%C3% A1lise+da+exposi%C3%A7%C3%A3o+da+imagem+infantil+como+fonte+de+renda+familiar+e+pos s%C3%ADveis+abusos. Acesso em: 23 jun. 2021.

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PÉREZ-LANZAC, CARMEN. Não publique aquelafoto do seufilho nasredessociais: Três em cada quatro crianças com menos de 2 anos têm fotos na Internet. Deveríamos frear essecostume?. El País, [s. l.], 9 jun. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/05/actualidad/1562335565_606827.html. Acesso em: 23 jun. 2021.

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